Irlanda a 4 - parte I




Parte I

Há um ano, fomos à Irlanda a 4. Hoje, o Zé e a Marta contam como foi. O David e a Elsa falam-nos da sua experiência na parte II, acessível aqui.
Raízes atlânticas: a Baía de Galway
ilha de Inisheer (Inis Oírr em irlandês) é a mais pequena das ilhas Aran, situada na Baía de Galway. Com cerca de 260 residentes permanentes pode ser classificada como o pedaço de pedra mais financeira e temporalmente acessível que conseguimos integrar no nosso roteiro pela costa ocidental da Irlanda.
Esquecida por alguns viajantes, surgiu-nos como uma possibilidade viável através da pesquisa atenta de algumas google images, certos blogues de viagem e graças a uma fugaz menção numa peça do Martin Mcdonagh que nenhum de nós tinha lido. Era ainda um nome reconhecido pela produção de lãs e dos seus sucedâneos, já que por todo país as «Aran Wools» apareciam pelas montras, quentes e pesadas (nos corpos e nas carteiras). As ilhas eram também conhecidas pela sua proximidade às Falésias de Moher: o postal da Irlanda. Possivelmente a imagem mais emblemática da Ilha Esmeralda que nos vinha a assombrar desde os primeiros reclames que vimos no aeroporto (em boa verdade, desde o planeamento da viagem, condicionando até a escolha do nosso pequeno airbnb em Liscannor).
Se apanhássemos o ferry que saía da baía de Doolin chegaríamos a Inisheer em 30 minutos e poderíamos voltar ao fim da tarde passando pelas Falésias — uma perspectiva privilegiada, pelo que nos tinham dito. Foi o que decidimos fazer.
Apesar do apelo das ovelhas e da vista, eu tinha uma outra motivação para a nossa ida a Inisheer. Desde que saíramos de Dublin que a paisagem me fazia pensar em casa. De facto, a Irlanda, com os seus verdes vivos e azuis profundos, remetia-me imediatamente para os Açores, mudando apenas a escala e o sotaque. Inisheer seria a maior expressão deste sentimento. Do isolamento, dos elementos da reclusão. Como escrevia Vitorino Nemésio: da geografia como uma força maior que a história, condicionando indelevelmente a forma como as sociedades se formam e prosperam perante as mais difíceis circunstâncias. Provar o sal da travessia entre Doolin e Inisheer encurtou imediatamente distâncias entre estes arquipélagos perdidos no Atlântico. E, nesse momento, eu sentia que entendia. Inisheer, a Irlanda, a sua «Wild Atlantic Way».



A ilha em si foi perfeitamente agradável. Alugámos três bicicletas (uma delas tandem) de um contentor enferrujado à beira-mar (o seu preço manifestamente inflacionado pela lógica de cartel/oligopólio prevalente na ilha) e usámo-las para a exploração dos maiores pontes de interesse: um barco encalhado (perigo mortal para quem não tivesse a vacina do tétano em dia), o velho farol (onde tirei uma fotografia à Marta para a qual remeto sempre que me ousam chamar de «mau fotógrafo») e o castelo em ruínas (que um agente imobiliário certamente descreveria como «acolhedor»).
Pelo caminho ainda tivemos a chance de ser admoestados por um condutor de charretes que persistentemente insistia que deveríamos usufruir dos seus serviços. O seu sotaque profundamente incompreensível e a insistência em lentamente nos «perseguir» de carroça pela chuva ligeira davam-lhe um ar ligeiramente perturbador, afetando as sensibilidades mais delicadas do contingente feminino do nosso grupo.
Pelas 17h estávamos de volta ao ferry e prontos para a nossa passagem pelas Falésias. O pequeno barco balançava liberalmente pelas ondas e ao nosso lado um homem de 50 e tal anos (e fortemente tatuado) vomitava vigorosamente para um saco de plástico da forma mais estóica que já conheci. Entre vómitos, rezava solenes Avé Marias ou trocava dois dedos de conversa com a mãe de cerca de 80 anos, a sua acompanhante naquela viagem, que lhe dava constantemente a mão (no meu entender mais para o seu conforto do que para o dela). Mas a vista mais impressionante estava bem mais acima. Por mais de 8 km tínhamos uma muralha da Irlanda antiga, um cartão de visita que dizia: «nós trepámos este calhau para construir paredes frágeis durante centenas de anos, comendo apenas ar e solidão — é esta a nossa casa».
E assim vivemos a Baía de Galway, com as cabeças viradas para cima, os olhos presos em pedra e em mar.
José Manuel
O ruidoso silêncio de Glendalough
Glendalough, que significa «o vale dos dois lagos», foi um dos primeiros sítios que visitámos na região este da Irlanda, quando deixámos a chuvosa cidade de Dublin. Vínhamos de Powerscourt Estate, um palácio em Enniskerry, construído no século XIII por um tal de Poer, com um extensíssimo vergel inspirado nos grandes jardins dos palácios europeus, que passou pelas mãos de importantes famílias irlandesas, recebeu reis e gente importante, sofreu incêndios — enfim, o costume. Não foi, portanto, difícil sentir o contraste entre a sumptuosidade desse lugar solarengo (mais simétrico do que agradável) e a paisagem ascética de Glendalough, uma das maravilhas monásticas do ventoso país dos trevos.
Deixámos o carro numa zona bastante movimentada — e talvez até turística. Havia barraquinhas de comida, rulotes de coisas várias, crianças pela mão dos papás e botas de montanha em alguns dos pés passeantes. Depois, num caminhar aparentemente inócuo, fomos avançando por entre carreirinhos e árvores até que demos de caras com a imagem estonteante, e quase perturbadora, do Lower Lake — um dos dois grandes lagos de Glendalough, uma fenda rasgada entre dois dos picos das altas montanhas de Wicklow, cujo verde mergulhava vertiginosamente na pacífica água do lago, apenas para se transformar na sua própria sombra. Arrepiei-me ao sentir que os miúdos brincavam junto à água como se aquela paisagem fosse só sinónimo de quietude — e o que eu via era o assombro de uma enorme e terrenha ferida por cicatrizar. À nossa volta, outros tantos estavam igualmente acomodados à imagem, e à esquerda um casal de noivos fazia uma sessão fotográfica com aquele panorama impressionista a servir de pano de fundo — e mais curioso talvez fosse o facto de posarem de costas para o dito deslumbramento, sem nunca o encararem.
Glendalough foi um dos lugares monásticos mais importantes de toda a Irlanda, tendo sido, no século VI, o local escolhido por St. Kevin para o seu recolhimento. E tantas centenas de anos depois, foi fácil de imaginar a paz que ali reinara durante tanto tempo — bem mais do que em qualquer outro recanto dos meus pensamentos. Imaginei o vulto hirto e impávido de St. Kevin, na margem direita do lago, com as suas mãos calejadas a fazer pressão sobre a cabeça de uma bela mulher que, em nome de Deus, ele afogava. Vi-o caminhar em direcção a uma baixa pedra escavada na montanha e olhar nos olhos a sua religiosidade, inclinando a cabeça para o céu, sem quebrar o penetrante silêncio dos ascetas — certamente sabia que o mundo que estava por vir seria infinitamente pior do que o dele.



Em 1398, destruído pelas tropas inglesas, Glendalough passou a ruínas — o que no nosso misticismo obstinado parece valer mais do que a própria ideia de se ser crente, peregrino, ermita ou mesmo santo. E nós, 500 anos depois desse saque, passeámos pelos trilhos que iam dar a essas ruínas e não pagámos um tostão pela nossa vida isenta de orações. Contornámos campas no cemitério medieval de Glendalough e analisámos ao milímetro a sua torre de proteção com mais de 30 metros, visitámos os escombros da igreja de St. Mary e a frieza ereta da St. Kevin’s Kitchen — estruturas datadas do século XII. E tal como quando pisamos terra sagrada e só mais tarde nos apercebemos de que não o fizemos com o devido respeito, fomos, lentamente, perdendo a inocência que nos levara até ali. Estávamos, também nós, isolados e eu tive a adelgaça sensação de que viagem nenhuma compensaria o facto de nunca me ter devolvido a um sítio qualquer onde só eu e os meus pecados existissem.
O sol já se punha quando viemos embora, andando pelos passadiços intermináveis que rodeavam a área das ruínas. O frio erguia-se do chão e esgueirava-se, curioso, para dentro dos nossos casacos.
Quando cheguei ao carro saquei do telemóvel e percebi que Glendalough talvez viesse a ser o sítio da Irlanda de que guardaria menos fotografias — o que, na verdade, se confirmou. Talvez tenha tido medo que a minha alma agitada aparecesse gravada nessas recordações fugazes, como um fantasma sem recatos que não sabe respeitar a serenidade de um sítio feito para se estar em silêncio.
«A solidão que não devia ser estar em total isolamento do mundo», pensei eu. E a solidão que não foi pensar nisso, ali, no meio de tanta gente.
Marta Cruz
Revisão e edição: Escrivaninha

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