Uma página de literatura light



O barulho de um homem a comer com voracidade um prato de percebes chamou-me hoje à atenção, numa esplanada, à beira-mar, em Sintra. Não passou muito tempo até que na refeição se incorporasse um monólogo.
– Amor, és tão bela! — mastigava. — Repara bem nesta espécie de forma fálica do percebe — disse, contemplando o molusco, e chupando, com afinco, o seu interior. A sua primeira frase, sem tempo sequer de existir, não se podia levar a sério. Os comentários sobre a iguaria intrometiam-se de tal modo que esmagavam de forma impiedosa o elogio.
— Vê só o design natural do percebe… — continuava, admirando o bicho com um olhar semicerrado, por todos os ângulos. Depois, chamou o empregado para o avisar de que estava prestes a tirar da mochila o tupperware com o acompanhamento que trouxera de casa: — Não se importa, pois não? É que estas couvinhas... Não têm cá disto. E se é para aproveitar ao máximo, pois então…! Ah… Que maravilha. — dizia, refastelado, enquanto procurava as couves salteadas que tinha trazido.
Passado alguns segundos, chamou, de novo e bem alto, o empregado (Grilo, era a sua alcunha). Desta vez o pedido foi obstinado: — Por acaso, não tem um carro que nos empreste, não? É que a hora do comboio nunca nos permite ver o pôr-do-sol… É uma chatice! — Com alguma vergonha pela pergunta alheia, o empregado lá disse que "não, não conduzia, mas iria ver o que se podia arranjar".
Subitamente e de novo dirigindo-se à namorada discreta, atirou: — Amor, o que é que te mantém nesta relação? Diz lá, mente se quiseres, mas diz-me… Tudo acontecia em catadupa, sem consistência ou verosimilhança, e no entanto, ali estava eu a ouvi-lo, entretendo-me. A namorada sussurrara-lhe qualquer coisa rapidamente, a que ele não deu importância. Sentia claramente um pudor febril por tudo o que o namorado dizia. Talvez se arrependesse do namoro?
— Apre, a cabecinha está a brincar comigo! Deviam pôr outros instrumentos para comer percebes! É que nós somos pobres… mas pobres conscientes, não é amor? Ahahahah! Amo-te! — Flup! E o último percebe foi finalmente sugado, depois de um beijo repenicado nos lábios da namorada, cujo ar contrariado guardava um preâmbulo do fim.
Malditos percebes, a descascar a natureza de algumas almas; a levar ao fim da solenidade do amor. Ficaram as cascas e em quem ouviu a sensação de ter lido uma página de literatura light.
Elsa Alves

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