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Mensagens

A mostrar mensagens de 2020

Cores de Natal, maçãs verdes e kitkats

Se há coisa de que gosto no Natal — e que tendo a dar como certa nessa época do ano — são as cores.  As cores persistem na minha vida desde sempre. As das lombadas dos livros meticulosamente encaixados nas estantes da minha infância, as das folhagens que cobriam o quintal, as das tintas com que, cedo, a minha mãe consentiu que pintasse o cabelo, e as das luzes que, no Natal, iluminavam a casa.  Como toda a gente, várias vezes julguei que me faltava muita coisa — é assim quando se é jovem e não sabe o que se tem. Mas cores, essas sempre as tive.  Desde os meus dez anos que o Natal foi passado um ano em casa, no conforto da família, e um ano numa qualquer cidade do mundo a que os meus pais me quiseram apresentar. Primeiro Londres, depois Madrid, Paris, e até Marraquexe. Em 2012, a escolha recaiu sobre Roma, porque à data eu vivia mergulhada em sebentas de Cultura Romana na Faculdade de Letras e estava certa de que, ali, perceberia tudo quanto não sabia ler nas entrelinhas....

Como falam os amargurados

— Bom, de facto só se estraga uma mesa...  — Ai, por favor fala baixo! — Se julgas que vou passar a noite calado só para não teres de me ouvir muito te enganas, ó! — Ah, imagino. Mas é um dia especial, João. Não custa nada ter calma... — Estou mais do que calmo. Só dispensava a má companhia. — Nem sei onde achavas que te iam sentar.  — Antes só que mal acompanhado! — Deixa estar que nem que me viesses pintado de ouro. — Ah, de ouro talvez, não é? — Enfim... Se não te comportas, comporto-me eu. A nós ninguém nos estragou a cerimónia. — Ah, não, pois não. De facto, nessa cerimónia, quem estava mal era só eu.  — Claro, já faltava… — É preciso ter lata! — Lata para quê? Pela decência de não te dizer isso na cara? Ou por te ter dito muitas outras coisas de que não gostaste? — E depois sou eu quem não se comporta. — Ah, sim, e eu hei-de ficar calada enquanto tu te sais com gracinhas tolas. Com franqueza! — Responde, responde. Que não te fique nada por dizer, mulher. Assim a noi...

Pontuar diálogos: por onde começar?

A semana passada, no nosso último «Conversa fiada», demos-vos algumas  dicas para escrever um diálogo — essa tão importante estratégia para quem escreve ficção. Em fruto de dúvidas que tantas vezes nos assolam a todos (sim, também a nós), dedicamos a publicação de hoje a um tema relacionado com o diálogo: a pontuação no discurso directo. Ora, antes de mais, é importante deixar claro que a pontuação em diálogo não segue regras fixas (além das que se aplicam a todo o restante texto, claro) tratando-se, portanto, de um tema que não pode de modo nenhum ser tratado com purismos e sem pesar o estilo de quem escreve.  Dito isto, meus caros leitores, há alguns conselhos que podem ser úteis para, pelo menos, mitigar algumas das dúvidas mais avassaladoras de quem escreve (e, vá, revê) discurso directo e que em nada devem castrar a liberdade do autor. Vamos lá? 1) Antes de mais, note-se que o mais comum é que o discurso directo em Português se distinga do indirecto porque vem entre tra...

Dicas para escrever um diálogo

  Quem gosta de ler ou deseja escrever boas histórias sabe que há um elemento a que raras vezes podemos fugir e sem o qual nada do que lemos nos convence: o diálogo. Pois é, o objectivo do diálogo — do grego  διάλογος , que significa « por intermédio da palavra» — é não só servir o avançar do arco narrativo de qualquer história, mas também — e sobretudo — revelar as características dos intervenientes.  Os momentos de diálogo são, por isso, momentos de recuo na narrativa que servem para a catapultar para um determinado lugar de acção, dando-lhe o contexto necessário para esse avanço/recuo e semeando os pormenores que definem a forma como cada uma das personagens se comporta.  Mas escrever um bom diálogo não é fácil. Antes de mais porque implica que quem o escreva vista a pele das várias personagens que intervêm e saiba exatamente como é que cada uma reagiria a determinado estímulo. Eis algumas das dicas que, aqui na Escrivaninha, consideramos essenciais para quem apre...

A criança fora da infância (II)

     Muito hesitante, preparou-se e vestiu-se com receio de que ninguém a reconhecesse e receosa das repercussões seguintes que aquela pergunta pudesse, ainda, ter no seu corpo. Antes do pequeno-almoço, a mãe da menina beijou-a e olhou bem para o seu rosto, enquanto lhe fazia uma festa carinhosa. O pai levou-a, como sempre, até à escola — entre sorrisos e algumas canções que sempre trauteava. Tudo permanecia igual e feliz. Só ela se sentia diferente e nunca antes tão só num duelo inglório com aquele que a todos pareceria um inimigo risível: uma pergunta. Na rua, durante o percurso até à escola, percebeu que o céu, as coisas e as pessoas ardiam nos seus olhos e o seu perfil delineava-se com contornos proeminentes. Pontualmente, o seu corpo tremia, como se alguma coisa de dentro dela quisesse sair mas tivesse de lá permanecer. Sentia que todas as pessoas a olhavam como muita atenção, detendo-se demasiado tempo nela. A cada olhar tinha a obsessiva sensação de que todos podi...

A criança fora da infância (I)

A criança começou a sair da infância depois de uma aula. O professor tinha feito um aparte na matéria, dizendo: «Todos nós seríamos, obviamente, capazes de dar a vida pelos nossos pais». Depois desta afirmação, « a criança não pôde mais coincidir plenamente com a infância » .  Ainda por cima, os outros colegas concordaram prontamente. Só ela ficara concreta na postura, perplexa durante o recreio, esquecida do lanche e de brincar, longe desse estado de distracção em que nada parece premeditado: a infância. E tudo por causa da afirmação do professor, latejando, ainda, na sua cabeça, durante o recreio.  Que ideia tão estranha: nunca antes se havia debatido com uma pergunta tão grave. Imaginava-se tentando salvar os pais de um eventual desastre, dando por eles a vida — ao mesmo tempo que duvidava fortemente da sua capacidade de suportar dor. E, no entanto, não deixava de considerar que deveria estar apta a passar por uma qualquer provação — afinal, fora o professor quem o dissera....

A omissão da consoante -s antes do pronome -nos (e de mais nenhum!)

No nosso dia-a-dia não falamos de termos como «conjugação pronominal» ou «conjugação pronominal reflexa», mas a verdade é que todos nós as usamos diariamente. A «conjugação pronominal» é o conjunto de formas flexionadas de um determinado verbo em associação aos pronomes pessoais átonos (também chamados clíticos): -me ,  -te , -lhe , -o , -a , -nos , -vos , -lhes , -os , -as , -se.  Vejamos alguns exemplos: 1) «Ele tinha um carro antigo. O meu pai comprou -o. »   -o é complemento directo (substitui «um carro antigo») 2) «Ele vendeu -nos a casa por tão pouco.» -nos é complemento indirecto (a quem se vendeu) 3) «A Maria comprou uns lindos brincos e ofereceu -mos. » -mos é complemento directo (substitui «uns lindos brincos») e indirecto (a quem foram oferecidos). 4) «Pedimos- vos que ficassem em casa...»  -vos é complemento indirecto (a quem se pediu). Quando o complemento directo ou indirecto é a mesma pessoa/objecto que funciona como sujeito da frase — veja-s...

Trade Mark, de António M. Pires Cabral, ou Quando as coisas revelam

António M. Pires Cabral é um poeta transmontano premiado, o autor dos poemas de «marca registada» de que hoje vos falo.  Trade Mark  é o primeiro livro que dele leio, mas não será decerto a sua melhor obra de poesia nem a mais sofisticada. Não carrega de todo a coroa do hermetismo, mas denota bom gosto e discrição e tem a vantagem de contar histórias. Afinal, esta é uma poesia autobiográfica, o que consola a faceta bisbilhoteira que todos temos (negá-la é negar uma boa parte de Shakespeare). Outro dos motivos que me faz considerá-lo um bom livro é o facto de me levar a formular uma questão mais ampla. Que temas estão ou devem estar — se é que os há — vedados à poesia? Deve o género poético restringir-se a musculadas temáticas como o Amor e a Morte, como se as confessasse? Ou pode o lirismo debruçar-se sobre calos, asma nocturna, azia e pastilhas que a atenuem, ou mesmo latas de fermento Royal ? Se há dois temas à volta dos quais se criam variações mais ou menos circenses, talv...

Piscar o olho à denúncia também é desiderato da literatura

  Graças a várias sortes que me calharam, nunca tive contacto com nenhum caso de violência doméstica. Pelo menos não o sei e só isso talvez acuse o verdadeiro problema desta questão: o silêncio de quem a vive nesses cenários e a ignorância de quem, tantas vezes sem dar por isso, assiste. Mas a verdade é mesmo essa: salvo uns vizinhos mais barulhentos cuja casa abria frequentemente as portas ao álcool — tinha eu 18 anos — nunca me vi diante de tamanha tormenta.  O que eu sei é que, mesmo nunca tendo vivido nada semelhante, desde cedo subscrevi aquela opinião francamente imatura de que «quem apanha, apanha porque quer» — e não fujo aos termos menos cuidadosos porque era mesmo assim que eu pensava. Julgava, com boa intenção mas sem um pingo de empatia, que «não há nada que justifique aturar um companheiro violento», com ou sem bebida.  Bem, não que eu acredite que algo justifique a postura de quem maltrata quem quer que seja. Não. Fique isso bem claro. Mas o certo é que hoje...

Três mulheres, três escritoras (lembradas por Stefan Bollmann)

Com base no livro Mulheres que Escrevem Vivem Perigosamente , de Stefan Bollmann, falamos-vos de três mulheres escritoras que, quer pela audácia, quer pelo talento, marcaram a História. Hildegarda Binden (1098-1179) e uma porta inusitada para a escrita Hildegarda Binden A proibição de São Paulo de que as mulheres escrevessem ou pregassem impediria a monja Hildegarda Binden (1098-1179) de se dedicar à sua vocação. Porém, anos mais tarde, depo is de Hildegarda  atravessar um período de doença, o Papa Eugénio III vê na sua “vocação de profetisa” uma justificação suficiente para a autorizar a, finalmente, registar as suas visões, deixando-as para a posteridade. Nos manuscritos, a monja descreve a doença como uma espécie de castigo divino infligido por não seguir aquela que considerava ser a sua missão: dar voz a Deus através da escrita. Hildegarda já tinha, à época, um revisor — os textos eram relidos e corrigidos por um escriba que melhorava, entre outros aspetos, a gramática (la...

Resiliência de poetas

Olhos postos nos ladrilhos nojentos da cozinha, a bater calcanhares furiosos para a frente e para trás como se quisesse assinar um sulco e afundar-me na divisão. Transpiro para dentro mas sinto-o como se me escorregasse um pingo de suor lento do pescoço para as clavículas, e desses contornos para os limites do peito. Marcho sem parar, por mais cansada que me sinta, e começo a querer abrir feridas nos cantinhos das unhas dos polegares, de tanto que os esgaço com as dos anelares nervosos. Abre-se a porta e eu paro, sentindo o meu couro cabeludo quente – ao longe, ouço a mãe dizer-me um displicente quem tanto transpira, até da cabeça.  Já sei que me espera um desacato qualquer. — Doutor, não se atire já a mim! Eu juro que tenho feito de tudo... – digo-o com o ar pálido de quem diz a verdade mas teme que ela pareça mentira.  Tenho a impressão de que as minhas unhas já sangram, de que o cabelo se colou à minha cara e de que, entretanto, esculpi esporões calcâneos que em breve abri...

Cessão, sessão, cessação e secção

Quatro termos tramados: cessão , sessão , cessação e secção . No «100 erros» de hoje falamos-vos de quatro termos que em nada são iguais mas que, amiúde, são confundidos entre aqueles que escrevem. Referimo-nos a quatro palavrinhas que têm algumas semelhanças, mas que ostentam sobretudo as suas diferenças. Vejamo-las. Duas dessas palavras são homófonas, o que significa dizer que têm o mesmo som, mas escrevem-se de maneiras diferentes, tendo, obviamente, significados também diferentes. Falamos dos termos cessão e sessão . A palavra cessão tem várias acepções, podendo significar o «acto ou efeito de ceder, a transmissão de um bem ou direito a outrem através de uma quota», «o acto de desistir de algo ou de renunciar a alguma coisa; «a acção de dar permissão» etc. Leiamos alguns exemplos do uso deste termo: 1) «A cessão dos bens foi justa.» 2) «Diga sim à cessão de material escolar àqueles que mais precisam.» 3) «Claro que cessão e cessação são coisas diferentes!« Em segundo lugar, t...

Cair para dentro, com Valério Romão

Cair para dentro é um livro que vem fechar o ciclo de três romances a que Valério Romão resolveu dar o sincero mas visceral nome de «paternidades falhadas». Eu, que gosto de andar sempre ao contrário, não li os primeiros dois romances da trilogia – Autismos e O de Joana –, mas a verdade é que Cair para dentro foi uma daquelas compras precipitadas e quase violentas que fazemos quando não vamos à procura de nada numa livraria mas encontramos algum livro (ou algum autor, como foi o caso) que simplesmente temos de levar connosco.  Assim, feito o desabafo, mas sabendo que o tema (a família e as suas disfunções) e, sobretudo, a linguagem de Romão (que conheci através do  Facas de que já aqui vos falei) são duros de roer,  mergulhei neste livro de cabeça, desrespeitando a ordem de publicação da trilogia – o que, entretanto, posso dizer que é um exercício igualmente interessante e que em nada desvirtua a leitura dos restantes romances. Mas, afinal, de que trata Cair para ...

A Escrivaninha vai de férias (e o nosso blogue também)

Todos precisamos de um descanso  e a Escrivaninha não é excepção! Por isso, durante esta primeira semana de Agosto suspendemos os nossos serviços e também o nosso blogue. Voltaremos com energias repostas  para continuar o bom trabalho e as nossas publicações!  Até breve!   Escrivaninha 

«Que» ou «de que»? Eis a questão

Que ou de que ? Eis a questão | Fonte: Unsplash Entre as várias dúvidas que o domínio da língua portuguesa tantas vezes causa, há uma que, apesar de passar relativamente despercebida, é bastante assídua.  Quando é que dizemos apenas que ou de que ? Ora, é muito simples, saber se utilizamos que ou de que com determinados verbos ou substantivos e adjectivos depende de um conceito de que já aqui falámos algumas vezes: a regência. Para relembrar, a regência refere-se, nada mais nada menos, do que à relação entre uma determinada palavra e seus dependentes.  Quando falamos da regência verbal falamos do facto de alguns verbos precisarem de preposições para darem "entrada" nos complementos e outros não. Já no caso da regência nominal a palavra regente é sempre obrigatoriamente preposicionada.  Assim, e mpregamos de que , quando o verbo que antecede este de que exige a preposição de (isto é, é regido pela preposição de ). Exemplos: 1.1. «Lembrei-me de ir a casa do João.» 1....

A Louca da Casa, a de Montero e a nossa

A Louca da Casa , Rosa Montero Não vos apresento Rosa Montero pelo simples facto de que não estou certa de que possa fazer jus aos vários dotes da autora e, sobretudo, porque sei que não o posso fazer sem falhar redondamente. Então, digamos apenas que Rosa Montero é uma romancista e jornalista espanhola (e a ordem não é aleatória), nascida em 1951, numa Madrid em que eu nunca hei-de estar (curioso que possamos falar assim sobre todos os sítios do mundo). Entre a não pouco extensa obra da autora, vive um livro que persegui – e temi ler – durante anos e que hoje tento recomendar com toda a sinceridade e falta de jeito que me caracterizam, pedindo desde logo desculpa por tudo quanto eu possa revelar a respeito deste livro ser, inevitavelmente, redutor. A verdade é que a minha mestria não me permite fazer melhor, embora saiba que a mais não sou obrigada. A Louca da Casa é um livro que, antes de mais, é difícil de rotular por uma simples razão: é um ensaio ficcional autobiográfico com toda...