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Mensagens

A mostrar mensagens de 2021

Tão pouco e tampouco

  Muitas são as diferenças entre este par e, no entanto, confundimo-lo constantemente. É verdade que nuestros hermanos usam mais do que nós o «tampouco», que parece quase ter caído em desuso entre nós, portugueses. Mas não é difícil usá-lo em condições e orgulhar o peito luso. Na expressão «tão pouco» temos duas palavras. «Tão» é advérbio e «pouco» pode ser usado como advérbio (frase 3.) ou como pronome indefinido, e neste último caso concorda em género e número com o nome a que diz respeito (frases 1, 2 e 4.) Vejamos como e quando usá-las. Ex: 1. Tenho tão pouco dinheiro e tão pouca ambição para ganhar mais... — chorou o Manuel. 2. É só cunhas! Tão pouco mérito nessa tua nomeação, Álvaro! 3. Sei tão  pouco ... — pensou. 4. Há tão poucos alunos estudiosos... Tão pouca sede de aprender. Já «tampouco» é apenas uma palavra formada por aglutinação e trata-se de um advérbio com o sentido de «também não», «sequer», «muito menos».  Já «tampouco» é apenas uma pa...

Diálogos entre a prosa e a poesia — parte II

Fonte: Unsplash   Rotinas Prosa : Tive uma semana tão atarefada e intensa! Nem imaginas: aulas de step , idas à praia, piqueniques, viagens... Ufa! E o melhor? Nestas idas e voltas ficam a saber-se coisas! Sabias que o Jaime foi despedido da empresa onde trabalhava? E que a Patrícia se casou com o Eduardo, o coxo? Poesia : Não atribuas essas categorias redutoras às pessoas... E, por favor... saí agora do yoga , ainda me sinto a levitar. Tem dó de mim. Não me satures com banalidades. Prosa  ( pensando) : É por essas e por outras que ninguém a atura... Na perfumaria Poesia : Não sei qual deles levar... o perfume ou o creme de mãos? Prosa : Nem eu, cheiram todos tão bem... E a textura deste sérum ?  Poesia : E porque não levamos tudo? Prosa : As más línguas vão-nos chamar «sinestésicas». Poesia   (sedutora) : Ora, se os inebriarmos não nos chamarão nada... Pratos favo...

De que falamos quando falamos de amor, de Raymond Carver

Foto: Relógio D'Água Embora também um poeta, Raymond Carver é essencialmente conhecido por ser contista. Na sua curta carreira, conta com várias colecções de contos sendo que aquela de que vos falo aqui foi a sua terceira publicação do género, no ano de 1981, sob o título What We Talk About When We Talk About Love .  O título da obra é também o título de um dos contos que a integra — talvez até dos mais famosos do autor e também dos que mais me ficou na memória depois de ter lido toda a colectânea — e foi traduzido por Carlos Santos e publicado em Portugal através da editora Relógio D’Água, com o título De Que Falamos quando Falamos de Amor . Através de um registo bastante episódico (vários destes contos passam-se num só espaço, num determinado momento, relatando apenas um evento), as relações que se estabelecem entre estas personagens revelam as suas fragilidades e fraquezas.  Muitas vezes estas acabam por se manifestar em casos de adultério, como, por exemplo, nos contos «Sa...

Velhos, lares e eufemismos

    Uma velha bonita. Fonte: Unsplash   «Lares», esses sítios para onde vão, para onde são enviados os idosos, os séniores — ah... o eufemismo na palavra... e que palavra... com veneno sibilante da serpente: a linguagem. Não gosto da ideia de lar e esta implicância começa na hipocrisia do nome. Para ir para um lar é necessário sair-se do seu. Os lares podem ser (são certamente) importantes para muita gente, mas posso não gostar deles? Para mim, o lar é um sítio asséptico e descaracterizado, em que o que devia ser amor e mimo se substitui por normas sensatas; onde prepondera a atitude temperada e as atividades têm sempre um odioso propósito qualquer... Julgo que o lar infantiliza os velhos ao «obrigá-los» a fazer ginástica ou uma coisa chamada «terapia do riso». Destitui-os dos vícios e das manias que a idade implantou, endureceu neles, ao seguir a máxima de que o que é bom para todos será bom para cada um deles.  Eu, que imagino os velhos como pessoas cravadas pelo t...

Janelas

Janelas indiscretas entretêm. Fonte: Unsplash No caminho do trabalho para casa, tinha por hábito perder-se entre os prédios, fascinado pelas janelas que, do outro lado, revelavam salas com luzes acesas. Para trás, deixava um dia de trabalho e olhava as janelas da mesma forma que estava habituado a ver outras pessoas olharem as estrelas. Daquela perspetiva, ao longe, eram realmente estrelas que lhe pareciam. Fontes de luz numa noite já cerrada, embora as horas acusassem apenas umas nove e meia da noite. Não conseguia ver o que acontecia do outro lado. Eram as janelas dos andares mais altos que o fascinavam. Não era o voyeurismo que o impelia a deter-se daquela forma. Era a realidade imaginada e as possibilidades que poderiam estar por trás delas que o cativavam, como se fosse um exercício ao qual se dedicava para libertar o seu potencial criativo. Ingenuamente, as imagens que lhe passavam pela cabeça das vidas que aqueles apartamentos poderiam guardar traziam-lhe sempre um gosto daquil...

Estada ou estadia?

Estada e estadia — uma batalha perdida?  | Foto de Unplash Há umas semanas, acabada de chegar a um hotel, diziam-me na recepção: «Boa estadia!». Foi aqui que surgiu a ideia de escrever, na Escrivaninha, no próximo 100 erros, sobre esse par confuso que é «estada» e «estadia». É certo que o erro está amplamente disseminado. Faça-se uma pesquisa no Google por férias e hotéis e percebe-se a confusão e a a praga das «estadias» usadas indiscriminadamente. Mas, como na Escrivaninha não acreditamos em batalhas perdidas e ainda temos esperança de que os nossos leitores comecem a generalizar a correcção, vamos a explicações. «Estada» é um substantivo feminino que, segundo o Dicionário Morais , significa: «ato de estar, ficar em algum lugar; assistência, permanência, detença.» Pode também designar um «andaime armado numa parede alta para acabar a sua construção», apesar de esta acepção nos parecer muito pouco usada. O sentido mais comum de «estada» é mesmo o primeiro. Para vos ajuda...

Detesto telefonemas

Falar ao telefone é, para alguns, um suplício. Fonte: Unplash Acabo de virar a página e o telefone toca. Detesto telefonemas. Sobretudo os que não sou eu a fazer e mais ainda os que me interrompem alguma tarefa prazerosa. Quem é que veio instaurar esta mania-hábito de estarmos em constante contacto uns com os outros, a todos os momentos do dia quando, se nos pusermos a relatar a nossa vida com esse tipo de regularidade, acabamos por ter tão pouco para dizer? Nos dias mais preenchidos (cheios de aplicações, chats e malditos aparelhos fervilhantes) ataca-me uma daquelas dores que insistem em testar a estrutura das minhas têmporas. São constantes ding-dings, vibrações, vozes baixinhas, leituras, estímulos visuais, correctores automáticos hitlerianos e tic-tics de teclas que só não choramingam por batermos tanto nelas porque não conseguem. E uma pessoa não pode ao menos detestar telefonemas? Detesto telefonemas. Sobretudo os de números que desconheço  (mesmo sabendo que posso perder ...

Escrever um bom ensaio literário

Fonte: Unsplash Já se percebeu que, por aqui, não subestimamos a escrita: a arte da palavra é difícil de domar sobretudo se tivermos em mãos a tarefa de escrever um ensaio literário. Escrever um bom ensaio (e há-os tão verborrágicos, tão adjectivados, cansados e longos como esta frase) pode ser desafiante. Por isso, hoje damos-vos alguns conselhos que podem ser úteis. Antes de mais, a questão que se impõe é: como saber se determinado tópico é ou não válido para tratar num ensaio? Escolher um problema, uma questão passível de ser argumentada — não um facto Um ensaio literário não se trata de simplesmente discorrer sobre o livro X ou Y, resumir a história e/ou dar a tua opinião sobre ela (como por vezes fazemos aqui, em freestyle, na Escrivaninha). Escrever um ensaio implica fazer uma pergunta específica ao texto e ver como ele nos responde. Trata-se de escolher uma questão passível de argumentar. Dizer, por exemplo, que Oliver Twist é a história de um órfão que viveu em meados do sécu...

A Gorda, de Isabela Figueiredo

A Gorda A Gorda , de Isabela Figueiredo, apresenta-se como uma interessante e inesperadamente leve experiência de leitura que me transportou para as memórias de Maria Luísa: uma mulher de meia-idade que nos conta várias narrativas sobre diferentes âmbitos da sua vida. Este primeiro romance da autora cativou-me pela sua linguagem simples e honestidade despretensiosa. Hoje conto-vos porquê. A estrutura do romance aproxima-se à de um diário ou à de um livro de memórias, sendo contado na primeira pessoa. Os títulos de cada um dos capítulos correspondem a diferentes divisões da casa, que por sua vez se relacionam com as diversas temáticas que Maria Luísa decide discutir em cada uma. As histórias que nos conta são episódicas e muitas vezes interrompidas, dando espaço para novos eventos para, mais tarde, serem retomadas — tal como a nossa memória habitualmente o faz. Nestas histórias ficamos a conhecer o grande amor da vida da personagem, a sua relação com os pais, a forma como lidava com o p...

Espoletando e despoletando granadas por essa língua fora

Granadas por essa língua fora Fonte: Pixabay Há uns dias ouvíamos  A beleza das pequenas coisas —  o podcast de Bernardo Mendonça no Expresso  —, desta vez com a Sara Barros Leitão. E, embora muito mais atentos ao conteúdo da entrevista do que à forma, não fomos capazes de não notar dois momentos que perpetuam uma imprecisão muito comum na língua portuguesa. Num primeiro momento, pergunta Bernardo Mendonça: «Mas houve algo que despoletou isso? Houve um gatilho para sentires essa urgência de ter voz e de ter mensagens a passar?» Mais adiante, diz Sara Barros Leitão, a respeito dos seus «medos e fantasmas»: «A partir do momento em que tu aceitas dar uma entrevista, como eu estou a fazer hoje, obviamente que eu saio daqui e penso: "Pronto, tenho medo do que é que isto vai despoletar ." Por exemplo, tenho medo do que é que se vai escrever, descontextualizando aquilo que eu digo (...)» Ora, «despoletar» é um verbo que, como nestes dois casos, é muitas vezes confundido com o ...

Diálogos entre a prosa e a poesia — parte I

Se a prosa e a poesia fossem amigas, o que diriam uma à outra?  Provérbios preferidos  Prosa : «Grão a grão enche a galinha o papo».  Poesia : «Para bom entendedor, meia palavra basta». Férias   Prosa : Vou para Tormes. Lá sinto-me bem. Poesia : Vou para Pasárgada. Lá sinto-me bem também.  Serões de família  Prosa : A minha família? Numerosa e faladora, como eu! Enchemos a casa toda e à noite contamos histórias. Fazemos grandes jantaradas, dialogamos muito!  Poesia : Quase todos discretos... Gostamos da noite e de resolver charadas... Ah e de gatos e corvos falantes.  Aniversários  Prosa : Celebro sempre com uma festa de arromba e convido toda a gente — sobretudo muitas personagens secundárias! Protagonistas? Não! Nos meus anos, a protagonista sou eu! Sim sim e não me importa que me acusem de ser meta-literatura! ( deitando a língua de fora ).  Poesia : Não gosto de fazer anos... É  sempre um dia nostálgico... No...

A Little Life, de Hanya Yanagihara

A Little Life Quando decidi ler A Little Life , de Hanya Yanagihara, conhecia o suficiente sobre a obra para saber que me propunha a ler um romance difícil de digerir. Desconhecia, contudo, os motivos que me levariam a considerá-lo assim. Feita uma breve pesquisa, descubro que este é o segundo romance da autora americana, que é natural do Havai, mas vive em Nova Iorque — a cidade que serve de cenário à narrativa de A Little Life . Embora nunca lá tenha estado, sinto que estou perante uma representação fiel da cidade, como Hollywood jamais foi capaz de me apresentar. As primeiras páginas da obra transportam-me para um núcleo composto por quatro personagens: um grupo de amigos coeso, cuja amizade universitária resistiria para o resto da vida. Sou apresentado a Malcolm, uma personagem que ainda se está a descobrir e que vejo como aquele amigo que procura ficar sempre à margem dos conflitos. De todos, é o único que pode contar com um apoio financeiro estável da parte dos pais — o que surge...

Quarto sem vista

Pela porta de madeira escura, à direita, encostada à parede branca, a cama já ocupa o meu olho todo. É alta, tem 200 x 180 cm, um colchão gordo e sobre ele está esticado um edredão de penas azul-escuro, pesado como os que vivem nos quartos de hotel, cujos limites estão todos a dois centímetros do chão, medidos a olho de arquitecto. Não vejo os pés deste animal de sono, o que é sinal de que não tão cedo correrá na minha direcção e de que tenho tempo para bisbilhotices. Os lençóis, que só vejo quando levanto timidamente o edredão, estão repuxados como o cabelo de uma bailarina: tudo indica que passam por aquele tratamento de goma dos alojamentos turísticos para que nada saia do lugar e as pessoas sejam expelidas da cama antes do meio dia. Sobre a cama, quatro almofadas gordíssimas: duas invisíveis, debaixo da escuridão da coberta, outras duas de um azul-escuro-esverdeado, com uns apontamentos em linha recta pouco óbvios no canto superior direito de cada uma. Não há aqui simetria, mas há ...

«Cilício» e «silício»

No «100 erros» de hoje falamos-vos de duas palavrinhas homófonas — que se lêem exactamente da mesma forma mas têm grafias e significados diferentes. Embora não muito usadas no nosso dia-a-dia, é importante sabermos distinguir estes termos que, quando ouvidos ou lidos em certos contextos muito específicos, podem, pelo som idêntico, gerar alguma confusão.  Referimo-nos aos termos cilício e silício . Já ouviram falar deles? Pois bem, se não, vamos a explicações, munindo-nos do Dicionário Houaiss da Língua Portugues a.  Cilício com <c> vem do latim CILINICU e significa «uma túnica ou faixa de crina ou de um pano áspero e grosso» ou «um cinto ou cordão eriçado de cerdas ou correntes de ferro, cheio de pontas» usado como forma de penitência. Além disso, o cilício pode remeter para uma armação usada, em tempos, por soldados como protecção contra as armas de arremesso. Ademais, pode, em vez de designar a túnica de penitência que referimos, assumir o sentido figurado de «...